Na corrida contra o relógio para enfrentar uma epidemia, grave e mortal, a biomédica piauiense Lair Guerra chegou a suspender o hábito de almoçar. Rodeava-se de frutas, sanduíches e sucos. Seu objetivo: ganhar tempo. Era período de decisões urgentes e em larga escala contra o vírus HIV, que assustava todo o planeta.
Para conter o vírus, em 1986, o Ministério da Saúde criou o Programa Nacional de DST/Aids e convidou a piauiense, doutora em microbiologia e infectologista, Lair Guerra Macedo Rodrigues, na época com 43 anos, para coordenar as ações contra a doença no Brasil. Iria começar quase do zero, uma responsabilidade monumental.
Quem era Lair Guerra
Nascida em 28 de março de 1943 no povoado Jeti, antes pertencente ao município de Parnaguá, hoje Curimatá, Lair Guerra, graduou-se na Universidade Federal de Pernambuco. Casou-se em 1962.
Em 1977 começou a lecionar Microbiologia na Universidade Federal do Piauí (UFPI) e a administrar o laboratório da universidade. Ela também foi professora da UnB (Universidade de Brasília). A piauiense fez pós-graduação no Centro de Controle de Doenças (CDC) e em Harvard, nos Estados Unidos.
Ao obter bolsa da Organização Pan-americana de Saúde foi morar em Atlanta, na Geórgia (EUA), com a família. Na cidade americana atuou como pesquisadora visitante na área de doenças sexualmente transmissíveis no Center for Disease Control (Centro de Controle de Doenças). Paralelamente, cursou o mestrado em Microbiologia na Georgia State University, enquanto acompanhava as primeiras pesquisas sobre o vírus HIV.
Ao retornar ao Brasil dirigiu o Programa de Saúde Materno-Infantil do Ministério da Saúde. Devido à sua experiência, foi nomeada para coordenar o programa brasileiro de controle DST/Aids, que virou um exemplo para todo o mundo.
Incansável, Lair Guerra, enfrentou a burocracia, falta de recursos e o preconceito. De barco, carro ou avião, ela percorreu o Brasil e o exterior intensificando campanhas de esclarecimento e popularizando palavras como “preservativo” e “combate ao HIV”.
Mobilizou o país para as fiscalizações dos bancos de sangues e se aliou às organizações não-governamentais para adotar políticas públicas de enfretamento à doença e pelo direito dos portadores. Uniu ciência às questões sociais.
A persistência de Lair Guerra também foi fundamental para a universalização dos medicamentos retrovirais, o popular coquetel, contra a aids, contando com apoio de ONGs. Com isso, os pacientes passaram a receber de forma gratuita os medicamentos.
Realizações que fizeram a diferença
Lair estabeleceu ainda centros de referência para o tratamento de pacientes, incentivou a criação e manutenção de organizações não-governamentais e representou o Brasil em reuniões da Assembleia Mundial de Saúde, em Genebra. Comandou o programa por 10 anos.
Aliando estratégias de comunicação e conhecimento cientifico, Lair Guerra, conseguiu mobilizar o país e reduziu os casos em uma devastadora epidemia que em 2005 tinha mais de 360 mil casos notificados de Aids.
Em agosto de 1996, o destino pregou mais uma peça: quando estava a caminho de um congresso brasileiro de infectologia, e iria dar uma palestra, o táxi que levava a piauiense teve uma colisão com um ônibus. No acidente, ela teve traumatismo e passou dois meses entre a vida e a morte. Recuperou-se lentamente, mas não pôde reassumir as suas funções devido às sequelas.
Mãe de cinco filhos, Lair Guerra é irmã de Carlyle Guerra de Macedo, ex-diretor e Diretor Emérito da Organização Pan-Americana de Saúde e de Alvimar, clínico de Brasília. Ela também é irmã da médica e ex-prefeita de Curimatá, Estelita Guerra, que morreu em acidente de trânsito em 2012. Lair tem 11 irmãos, cinco deles vivos.
Prêmio Nobel
Em reconhecimento ao trabalho de Lair Guerra, a Assembleia Geral da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, reunida durante o seu XL Congresso em Aracaju, indicou o seu nome para o Prêmio Nobel da Paz em 9 de março de 2004.
Símbolo de luta pelos direitos da pessoa com HIV, a biomédica tem reconhecimento nacional e internacional.
Desde o acidente, Lair Guerra vive em cadeira de rodas e tenta se recuperar das sequelas do acidente. Desde janeiro desse ano, ela está internada na UTI de um hospital de Brasília, após diagnóstico de pneumonia.
Hoje, aos 80 anos, ela é uma guerreira da paz, uma mente brilhante e que inspira muitos piauienses.
Veja o que já disseram sobre ela:
“... o nome de Lair deve ser exaltado porque foi sua capacidade de propor, sua coragem de defender e sua eficiência em executar que nos colocaram na direção correta, consolidada por tantos que, com competência e dedicação, mantiveram as ações crescendo, garantindo, em área tão sensível, o reconhecimento de uma liderança que partiu de Lair”, disse Adib Jatene, ex-ministro da Saúde, que morreu em 2014.
“Muitas pessoas contribuíram para a organização do programa brasileiro, em sua resposta às demandas geradas pela epidemia, encaminhadas pelo movimento social e possibilitadas pela lei. Contudo, uma pequena mulher se destacou. Dra. Lair Guerra de Macedo Rodrigues, dirigiu o programa durante os 10 anos mais críticos e o moldou ao seu estilo: audaz, ambicioso e justo”, disse o infectologista Carlos Henrique Nery Costa que publicou um artigo defendendo o nome de Lair ao Prêmio Nobel (leia aqui)
O irmão de Lair Guerra, pastor Júlio Borges Filho, 79 anos, disse que ela é uma mulher de garra, que enfrentou muitas batalhas, discriminação, mas sempre acreditou na sua missão. No aniversário de 80 anos da irmã, Júlio Borges escreveu um poema.
Uma mulher de fibra
Desde pequena já era forte e decidida...
A palmatória de mamãe não bastava
Para abater a sua alma mui aguerrida,
E ela lutava, persistia, sempre teimava.
Cresceu com a beleza das carnaubeiras,com a saúde e o verdor dos juazeiros,
Estudou à sombra de belas mongubeiras
Com garra e a sabedoria dos espinheiros.
Cresceu estudiosa, aplicada e boa cristã,Casou-se e, sonhando com o amanhã,
Teve com seu amor maravilhosos filhos.E sempre estudando, lutando com arte,
No auge de sua vida veio o desastre.
Tudo mudou, mas conservou os brilhos.Brasília, 25.03.2023
Júlio Borges Filho